quarta-feira, 11 de agosto de 2010

A moralidade e o direito

Por Ruy Fabiano, jornalista:

A inoperância estrutural do Poder Judiciário, alimentada
por leis processuais que adiam ad infinitum a definição
final de uma sentença judicial, é a mãe da lei da Ficha
Limpa, que nasceu sob o signo da inconstitucionalidade. Uma
anomalia pariu outra.

A Ficha Limpa, não obstante o clamor público que atende,
viola dois princípios universais do direito, cláusulas
pétreas da Constituição Federal brasileira: o inciso LVI, do
artigo 5º (“ninguém será considerado culpado até o trânsito
em julgado de sentença penal condenatória”); e o inciso XL,
do mesmo artigo (“a lei penal não retroagirá, salvo para
beneficiar o réu”).

A Ficha Limpa subtrai direitos de quem ainda não recebeu
sentença final – e pode ter as condenações iniciais
revertidas - e retroage para punir. Mesmo sendo
juridicamente anômala, tornou-se fator saneador das
eleições, mas pode trazer complicações futuras.

O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, teme
que um dos efeitos colaterais seja a impugnação de diversos
eleitos após a posse, gerando crises políticas em série.
Isso porque a impugnação de candidaturas, com base naquela
lei, tem ensejado a apresentação de liminares que garantem o
registro do candidato para julgamento do mérito a
posteriori.

Se eleito, o réu, julgado no mérito, poderá ter seu mandato
cassado. É o caso, por exemplo, do ex-governador do DF,
Joaquim Roriz, impugnado esta semana pelo Tribunal Regional
Eleitoral do DF, por ter renunciado ao Senado em 2007 para
fugir à cassação por quebra de decoro. Roriz vai recorrer ao
STF e pode obter liminar.

Outros já a obtiveram. Esse, porém, é apenas um aspecto dos
problemas colaterais que a lei causa.

Há outros, mais graves. O ministro Eros Grau, que recém se
aposentou do STF, falou deles, e causou grande controvérsia
entre políticos e juristas. Disse que a lei da Ficha Limpa,
pelas transgressões constitucionais já mencionadas, põe em
risco nada menos que o próprio Estado democrático de
Direito.

As boas intenções, diz ele, não atenuam o precedente que
cria, de violação da Constituição. Se o problema está no
Judiciário, na sua sobrecarga e nas leis processuais, não se
pode simplesmente revogar o devido processo legal – e com
ele o direito de defesa – em nome de uma boa causa. No
futuro, o mesmo expediente poderá ser acionado em nome de
uma má causa.

O que a Ficha Limpa pretende ninguém discorda: moralizar as
eleições. Mas a moralidade pública, diz Eros, não é um dado
subjetivo, “é a moralidade segundo os padrões e limites do
Estado de Direito”. E explica:

“Essa é uma conquista da humanidade. Julgar à margem da
Constituição e da legalidade é inadmissível. Qual
moralidade? A sua ou a minha? Há muitas moralidades. Se cada
um pretender afirmar a sua, é bom sairmos por aí, cada qual
com seu porrete. Vamos nos linchar uns aos outros. Para
impedir isso, existe o direito. Sem a segurança instalada
pelo direito, será a desordem. A moralidade tem como um de
seus pressupostos, no Estado de Direito, a presunção de não
culpabilidade”.

O problema é que, depois de dizer o óbvio, Eros passou a ser
chamado injustamente de defensor dos fichas sujas, quando,
ao contrário, constatou e lamentou a precariedade de um
sistema judicial e político que permitiu que proliferassem –
e que pretende agora bani-los sacrificando o direito e a
própria Constituição.

Nenhum comentário:

Postar um comentário